3 coisas que você precisa saber sobre o etanol da cana-de-açúcar brasileira

O etanol é um solvente utilizado em diversos setores da indústria. Quando usado para transportes, é também um dos biocombustíveis mais bem-sucedidos no planeta.

No Brasil, o desenvolvimento de tecnologias de produção do álcool a partir da cana-de-açúcar transformou o país em uma potência mundial de bioetanol. Por isso, faz sentido que os profissionais da indústria brasileira conheçam melhor este produto.

Aqui estão 3 coisas que você precisa saber sobre o etanol da cana do Brasil.

1- O etanol tem história

O uso de etanol como combustível no Brasil passou a ser amplamente incentivado com a criação do Proálcool, em 1975. O objetivo era desenvolver uma alternativa aos derivados do petróleo, devido aos altos preços do mercado internacional.

A partir deste programa, o governo brasileiro ofereceu vários incentivos a produtores de etanol e indústrias automobilísticas para o desenvolvimento de carros movidos a álcool. Esta iniciativa foi fundamental para que o país se tornasse uma referência global na produção deste biocombustível.

A cana-de-açúcar, por sua vez, foi trazida pra cá no início do período colonial. O primeiro engenho foi montado em 1533, em São Vicente, marcando o início do cultivo da planta em território nacional. 

Vale lembrar que o açúcar era uma mercadoria de alto valor naquela época. Logo, expandir a produção da mercadoria em solo sul-americano era uma grande oportunidade para os portugueses. A planta, inclusive, adaptou-se muito bem ao solo que encontrou por aqui e, por isso, a atividade espalhou-se para outros territórios.  

A economia canavieira foi, por séculos, protagonista da nossa história. Esta foi apoiada e sustentada por um modelo cruel de exploração e desumanização das forças de trabalho, por meio da escravidão. Ainda que com o tempo muita coisa tenha mudado, as heranças desse passado permanecem. Falaremos mais sobre isso neste texto. 

2- As etapas de produção

Uma descrição detalhada da produção do etanol pode ser encontrada no livro “Bioetanol de cana-de-açúcar: energia para o desenvolvimento sustentável”, disponível gratuitamente na biblioteca digital do BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento). Você pode fazer o download do conteúdo neste link.

Nas grandes monoculturas, o corte mecanizado da cana-de-açúcar permite que as queimadas sejam evitadas. Estas queimadas, necessárias para viabilizar o corte manual, são poluidoras atmosféricas que devem ser preferencialmente evitadas. 

Devido à alta concentração de sacarose (o caldo pode ter entre 12% a 22% em massa deste açúcar), a cana não pode ficar estocada por muito tempo.

Uma vez coletada, a planta é lavada e transportada para os moinhos. Depois, o caldo extraído na moagem é tratado para a remoção de impurezas. Os tratamentos realizados nesta etapa são: coagulação, floculação, precipitação e filtração.

Após o tratamento, a mistura resultante passa por uma série de evaporadores que promoverão a cristalização. Os cristais formados neste estágio são destinados à produção de açúcar, enquanto a porção não cristalizada, o melaço, é destinada à fermentação, para a obtenção do etanol.

A fermentação alcoólica pode ser realizada por vários microrganismos. Na indústria de etanol, a levedura Saccharomyces cerevisiae é a mais utilizada. 

Em ambientes sem a presença de oxigênio, esta levedura utiliza açúcares fermentáveis (glicose e frutose) para a formação de ácido pirúvico. Este ácido é então processado pela enzima piruvato descarboxilase para a produção de acetaldeído e CO2. Por fim, enzimas álcool desidrogenase fazem a redução do acetaldeído a etanol. Estas etapas são ilustradas a seguir.

Em ambientes sem a presença de oxigênio, esta levedura utiliza açúcares fermentáveis (glicose e frutose) para a formação de ácido pirúvico. Este ácido é então processado pela enzima piruvato descarboxilase para a produção de acetaldeído e CO2. Por fim, enzimas álcool desidrogenase fazem a redução do acetaldeído a etanol.


O rendimento teórico da fermentação é de 0,5 g de etanol por grama de açúcar. Contudo, esse rendimento dificilmente é observado em quaisquer condições. Isso acontece porque nem todo o açúcar utilizado pelo microrganismo é destinado à produção de etanol, uma vez que este ser vivo possui outras atividades metabólicas que demandam uma fonte de energia.

Após a fermentação, é feita a purificação do etanol por destilação (remoção da vinhaça) e retificação (remoção de outros álcoois). Esta purificação pode contar com uma etapa adicional, caso haja a necessidade de obtenção de líquido com concentração de etanol superior ao azeótropo formado com a água (95,6% massa de etanol/massa de solução).

Na indústria de combustíveis, essa necessidade é presente na produção de etanol anidro, aquele é misturado à gasolina comprada nos postos. O processo completo de produção de etanol é ilustrado abaixo.




3- Os aspectos da sustentabilidade

Naturalmente, por disputar recursos tão fundamentais para a vida na Terra, vários questionamentos sobre a sustentabilidade do uso do etanol foram levantados. Muitos deles são discutidos no texto “The sustainability of ethanol production from sugarcane”, que pode ser acessado aqui.

Alguns dos aspectos principais relacionados a esse tema são destacados a seguir.

Uso de agroquímicos

É possível produzir etanol a partir de várias matérias-primas diferentes. Apesar dessa versatilidade, os ganhos energéticos e ambientais variam de acordo com a biomassa utilizada. Neste aspecto, a cana se destaca em comparação com outros alimentos devido à quantidade reduzida de agroquímicos necessários para o cultivo em larga escala.

A redução da participação de agrotóxicos e fertilizantes na plantação tornam o uso dessa monocultura mais sustentável. Isso acontece porque resulta na diminuição de derivados de combustíveis fósseis no processo.

Por conseguinte, o ciclo fechado de carbono do etanol advindo da cana-de-açúcar é favorecido ambientalmente. De forma prática, o uso desse composto como fonte energética contribui para que mais emissões de gases de efeito estufa sejam evitadas, o que gera créditos de carbono

Balanço energético

Durante o processo de produção, toda a energia necessária é obtida do bagaço, separado no início do processamento. Assim, o consumo direto de energia fóssil é limitado aos caminhões de transporte, às máquinas utilizadas na agricultura mecanizada e aos fertilizantes, que como mencionamos antes, podem ser utilizados em quantidade reduzida. No Brasil, o consumo indireto também é pequeno, já que a nossa matriz energética é dominada pelas hidrelétricas, fonte renovável de energia.

Consumo hídrico

Para a produção de etanol, é necessário o uso de recursos hídricos no cultivo da biomassa. Em condições estáveis, a irrigação, responsável por altos consumos de água na atividade agrícola, não é tão comum nas plantações de cana no Brasil.

As chuvas tendem a atender as demandas da planta em quase todo o território nacional. Desse modo, a necessidade de irrigar a cultura é mais comum somente na região Nordeste, por razões climáticas.

Na etapa de conversão do combustível, a água é utilizada para a lavagem da cana, para resfriamento da fermentação e nos condensadores. Todavia, a maior parte desse recurso é reciclado na fábrica o que diminui a perda hídrica do processo.

Como é possível notar, as peculiaridades da cana-de-açúcar como matéria-prima no Brasil permitem que esta cadeia produtiva tenha demanda menor por recursos hídricos. Apesar da água ainda poder ser reciclada na fábrica, independente da matéria-prima, nem todos os tipos de plantação podem dispensar a irrigação.

De fato, a irrigação faz parte da produção de cana-de-açúcar em vários outros países. Ao mesmo tempo, há várias outras fontes de biomassa que precisam da implementação de sistemas de irrigação também no nosso país.

Fazer um uso menor de água é positivo porque a matriz energética nacional é muito dependente das hidrelétricas. Contudo, também é necessário lembrar que ao passo que as mudanças climáticas afetam cada vez mais o comportamento das chuvas no Brasil, as necessidades das plantações de cana também podem mudar.

Por isso, há necessidade constante do desenvolvimento de tecnologias que objetivem tornar a atividade agrícola mais econômica e sustentável. Esta necessidade não se limita à existência da demanda por etanol, mas também é fundamental para a segurança alimentar mundial.

Solo

O solo é limitado e disputado pela agricultura, pela pecuária, pela habitação, pelas florestas, dentre outros. As monoculturas voltadas para a produção de biocombustíveis certamente inflamam a competição por este recurso e fortalecem a necessidade do desenvolvimento de tecnologias de obtenção de combustíveis de segunda geração.

Contudo, no contexto da produção nacional hoje, medidas de prevenção contra a erosão, compactação e perdas de umidade do solo podem tornar a cultura mais favorável ao meio ambiente. De fato, com os procedimentos adequados, a perda de solo para a erosão nas plantações de cana é muito reduzida. No Brasil, há solos que produzem cana-de-açúcar há mais de 200 anos, sem comprometimento do rendimento da área plantada.

Condições de trabalho

Uma discussão sobre o trabalho nos canaviais é apresentada no artigo “Socio-economic impacts of Brazilian sugarcane industry” (2015). Lá, os autores mostram que a cana-de-açúcar tende a criar mais trabalhos formais que as demais culturas agrícolas.

Resultados levantados em 2012 relataram que os trabalhadores da cana, em média, puderam estudar mais que os outros trabalhadores rurais. Além disso, a média de anos de educação formal dos filhos destes trabalhadores tende a ser muito maior que a média de anos de educação dos filhos de colaboradores em outras plantações.

Além disso, nos canaviais o pagamento médio também era superior, uma diferença de cerca de 45%. Em relação às condições de trabalho, a implementação da mecanização e a demanda por mão-de-obra mais treinada foi apontada como benéfica, uma vez que o corte manual é uma atividade muito exaustiva que expõe os trabalhadores a diversos riscos.

Como falamos antes, não se pode ignorar as heranças da estrutura de trabalho degradante implementada na atividade agrária latifundiária do período colonial. Esta estrutura se manifesta na forma de vários desrespeitos aos direitos humanos e trabalhistas dos colaboradores do setor.

Apesar disso, o artigo cita a pressão internacional feita sobre o etanol, como produto de exportação, e a fiscalização reforçada feita sobre o trabalho nas plantações, como fatores que contribuíram para a melhoria das condições de vida do trabalhador. Várias outras considerações sociais são feitas sobre a indústria da cana-de-açúcar no texto, que você pode acessar aqui.

Em outra pesquisa, “Condições de trabalho no cultivo da cana-de-açúcar no Brasil e repercussões sobre a saúde dos canavieiros” (2021), o trabalho nos canaviais é novamente discutido. A partir de uma revisão da literatura, são evidenciados vários problemas de direitos humanos e trabalhistas do setor sucroalcooleiro.

Dentre os fatores que contribuem para o desgaste dos profissionais, são citados: risco de ocorrência de acidentes, exposição a radiações não ionizantes, a animais peçonhentos, a ruídos, a agrotóxicos e fertilizantes, a material particulado e condições de vida precárias. 

Esta precariedade pode envolver refeições inadequadas, alojamentos lotados e em péssimas condições sanitárias e transporte em veículos velhos e/ou clandestinos. Ademais, as cargas horárias de trabalho elevadas levam muitas pessoas à exaustão física e mental. 

No texto, que você pode acessar aqui, os autores concluem que a mecanização da colheita não melhorou, como prometido, as condições dos trabalhadores. Um exemplo claro de como a tecnologia, gerenciada sem o foco social, pode ser um mecanismo de manutenção de estruturas de exploração na sociedade.

Conclusões

O etanol da cana-de-açúcar é um biocombustível de primeira geração, cuja tecnologia já está bem estabelecida no mercado. A produção em escalas ainda maiores deste composto são limitadas pela competição por recursos limitados para a produção de alimentos, ração, habitação e preservação da fauna e da flora terrestre.

Para enfrentar estes desafios, serão necessárias pesquisas e desenvolvimento de mecanismos de produção de etanol de segunda geração. Também devem ser feitos estudos para a eletrificação estratégica de equipamentos e veículos. 

Afinal, a integração dessas duas fontes de energia (e não a predominância de somente uma delas), possivelmente será a alternativa mais sustentável para a substituição da energia fóssil. 

Em curto prazo, entretanto, combustíveis de primeira geração são muito importantes para a transição energética nacional. Por isso, as perspectivas sobre o futuro não eliminam a necessidade de avaliar o que já foi conquistado hoje, no etanol da cana, e o que ainda precisa ser conquistado a partir dele. 

Apesar de possuir balanço energético positivo e contribuir para evitar emissões de gases de efeito estufa, a produção ainda envolve problemas de sustentabilidade, especialmente associados às questões sociais, que precisam ser solucionados urgentemente.

Afinal, zelar por uma cadeia produtiva saudável e segura, também é engenharia química. Isso não pode ser feito sem o respeito ao ser humano e a valorização da classe trabalhadora.

Comentários